do fuuundo do baú



Ela e ele, esperando o 106. quatro e cinqüenta e sete da manhã, ela ouve marisa monte no mp3. ele dá uns passos na calçada como se estivesse em um show de rock: pra frente, pra traz, mexendo os ombros com a guitarra. Muito frio. Muito frio. Ela com o cachecol de listras laranjas e com as mãos no bolso, ele com as mãos no bolso e um gorro azul. Andam. Andam. Faz muito frio. Ela canta alto, sem querer, aquela parte que diz: “não diga nada sobre os meus defeitos, eu não me lembro mais, quem me deixou assim... Hoje eu quero apenas uma pausa de mil compassos”... Ele sorri, ela fica envergonhada e se encolhe mais ainda dentro do casaco de veludo marrom. Ele esfrega as mãos no rosto, olha o relógio. Caminha em volta da propaganda. Ela bate a cabeça três vezes na parada de ônibus. Ahh 106. Como demora o 106 nas madrugadas... cinco e doze da manhã... muitos táxis convidando os dois. Ela e ele. Onde ele estava que chegou depois dela? E ela? Estão ali, agora, os dois com as mãos no bolso, gorro, cachecol, frio, carros, luzes, vento, marisa monte, algum rock argentino. Teria ele algum cigarro? Mas pra que um cigarro? Ele, com aquele jeito argentino, rindo dela outra vez quando escapou a parte: “se quando eu lhe quis você nem mesmo soube dar amor?”. Ela ali, cada vez mais encolhida. Ele do lado dela... “tienes fuego?” “não...” “hace tiempo que estás acá?” “não... quinze minutos...” “no, pregunto se hace tiempo que estás en buenos aires...”(ele riu) “ah, sim, três meses” “y te gusta?” “sim, muito…” “viste la luna hoy?” “não…” “por?” “não tive tempo…” “yá...” “te molesta se fumo?” “não, tem vento...” (ele riu...) “posso te pedir uma coisa?” “si, como no... que quieres?” “me abraça?” ele abraça ela. O 106 chega. Ela vai embora, com as mãos no bolso e um msn anotado na palma.

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